21 de novembro de 2024
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Apenas um “grão de poeira cósmica”

No apagar das luzes do conturbado ano de 2020, a Agência Espacial Europeia (ESA, em inglês) publicou o mais detalhado catálogo de estrelas da Via Láctea já realizado. O catálogo inclui as posições e brilhos de mais de 1,8 bilhão de estrelas, obtidos por meio do Gaia, um satélite lançado em 2013, localizado a uma distância de 1,5 milhões de quilômetros da Terra, com o objetivo de entender a composição, a formação e a evolução da Via Láctea. Para os poucos familiarizados com assuntos de astronomia, a Via Láctea é a galáxia da qual o nosso sistema solar faz parte. Estima-se que existam de 100 a 200 bilhões de outras galáxias em todo o universo observável. 

Essa história de conhecer melhor a vizinhança terrestre e qual o tamanho do universo em que nos encontramos é bem antiga. Tudo indica que começou com Aristóteles (384 – 322 a.C) afirmando que no centro do universo estava a Terra, sendo orbitada pela Lua, seguida pelas órbitas de Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter, Saturno e, por último, da órbita das estrelas. Esta ideia de colocar a Terra em local privilegiado, no centro do cosmos, é conhecida como teoria geocêntrica e foi defendida posteriormente por Hiparco (190 – 120 a.C.) e Ptolomeu (100 – 168 d.C.), permanecendo válida por 14 longos séculos até ser desmentida pelas teorias heliocêntricas de Copérnico (1473 – 1543) e Galileu (1564 – 1642). Este último, pagou caro por ousar retirar da Terra (e consequentemente da humanidade), a posição de destaque no universo. Considerado herege pela Igreja Católica da época, passou os últimos anos de vida na prisão. Apesar disso, suas teorias permitiram que outros seguissem o caminho de desvendar nossa verdadeira posição no espaço. Kepler (1571 – 1630), Newton (1643 – 1727), Hubble (1889 – 1953), que deu nome ao famoso telescópio, dentre vários outros astrônomos, contribuíram para explorar nossos arredores e desvelar nossa real significância num cosmos infinito. 

Ao longo desta caminhada secular, um acontecimento chamou atenção seguindo a máxima de que “uma imagem fala mais do que mil palavras”. Há mais de 30 anos, no dia 14 de fevereiro de 1990, a pedido do cientista Carl Sagan, a sonda Voyager 1 da Nasa registrou uma imagem da Terra antes que a sonda saísse do Sistema Solar, a 6 bilhões de quilômetros de distância. A icônica imagem, batizada de “Pálido Ponto Azul” (mostrada abaixo remasterizada), deu à humanidade uma nova perspectiva quanto ao nosso planeta. Nas palavras de Sagan, publicadas no livro homônimo, Pálido Ponto Azul, de 1994: “Olhem para esse ponto. Isso é a nossa casa. Isso somos nós. Nele, todos a quem ama, todos que conhece, qualquer um dos que escutamos falar, cada ser humano que existiu, viveu a sua vida aqui. O agregado da nossa alegria e nosso sofrimento, milhares de religiões autênticas, ideologias e doutrinas econômicas, cada herói e covarde, cada criador e destruidor de civilizações, cada rei e camponês, cada casal de namorados, cada mãe e pai, criança cheia de esperança, inventor e explorador, cada mestre de ética, cada político corrupto, cada superestrela, cada líder supremo, cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu aí, num grão de poeira suspenso num raio de Sol”. 

Imagem da Terra a 6 bilhões de quilômetros de distância

Esta foto tornou-se extremamente expressiva na época. Por um lado, o mundo estava saindo de uma Guerra Fria na qual a humanidade esteve em constante ameaça de um ataque nuclear capaz de destruir boa parte da vida terrestre. De outro lado, a necessidade de preservação do meio ambiente, inicialmente discutida apenas entre cientistas e ambientalistas, começava a entrar na agenda dos governos das maiores economias mundiais. Visualizar a Terra de tão longe, como um ponto azul claro minúsculo em meio à escuridão do espaço, ao mesmo tempo que mostrou nossa insignificância diante da imensidão do universo (não estamos no centro do cosmos!), passou um recado sobre a urgência de união. Uma mensagem de que, apesar de nossas diferenças e desavenças, somos todos parte deste mundo único e especial, e que devemos nos unir para defender e preservar nossa morada. 

A foto, e as reflexões que ela ainda traz, são mais relevantes hoje do que nunca. Diante de um inimigo microscópico que deixou toda a humanidade de joelhos em 2020, fomos premiados pela evolução de nossa ciência que permitiu alcançarmos uma vacina em tempo recorde. Resta-nos, agora, com a humildade de quem sabe que não está no centro do universo, reconhecer nossas fragilidades, acreditar na ciência e lutar juntos contra este inimigo comum. Afinal, a mesma Igreja Católica que no passado negou a ciência não admitindo a veracidade da teoria heliocêntrica de Galileu, já deu seu recado de união a favor da vacina através do Papa Francisco. Nas palavras do Papa: “Acredito que do ponto de vista ético todos devem ser vacinados, porque você não só põe em risco a sua saúde, a sua vida, mas também a dos outros”. Enfim, a ciência de Carl Sagan e a religião do Papa Francisco, mais uma vez em harmonia a favor da união, do coletivo. Que assim seja! Afinal, habitamos o mesmo “grão de poeira cósmica”

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